Ives Gandra Martins Filho*
Há uma dinâmica própria entre Direito e realidade, na qual os fatos sociais devem ser regulados e amoldados pelo Direito, mas também em que esses mesmos fatos se impõem ao Direito, o qual não os pode desconhecer ou atropelar. E o fato mais impactante no mundo do trabalho, como em outras tantas dimensões do ser humano, no ano de 2020 foi a pandemia da Covid-19, que atingiu em maior ou menor escala o mundo inteiro, a partir de seu foco na província de Wuan, na China continental.
As principais consequências dessa pandemia na seara laboral, em face da decretação de lockdown em países, Estados e cidades, com confinamento generalizado (isolamento horizontal) e não apenas por grupos de risco em face da idade e outros fatores (isolamento vertical), para preservar vidas até o desenvolvimento de uma vacina ou remédio que combatesse a doença, foram fundamentalmente de duas ordens: aumento do desemprego (pela redução generalizada da atividade produtiva) e universalização do trabalho remoto (especialmente na modalidade de teletrabalho).
Para responder aos desafios da pandemia, medidas basicamente de duas ordens tiveram de ser implementadas pelo setor público e privado: socorro financeiro emergencial a governos locais, trabalhadores e empresas, e investimento no desenvolvimento científico e tecnológico não apenas para tratar dos doentes e descobrir remédio para a enfermidade, mas também para viabilizar a migração em massa rumo ao trabalho em plataformas digitais, cuja sobrecarga passou a dificultar o bom desempenho das ferramentas até então existentes.
Em relação a ambos os conjuntos de medidas, o Direito foi chamado a disciplinar o modo como seriam implementadas, visando a otimizar recursos financeiros, médicos e tecnológicos, e garantir direitos mínimos de acesso a esses recursos, colocando-se limites à liberdade individual e coletiva, em prol do bem comum da sociedade, tão duramente afetada.
As divergências ideológicas e políticas tiveram consequências funestas no combate à pandemia e seus efeitos no campo da saúde e da economia. Decisões foram tomadas não pautadas exclusivamente por critérios técnicos ou jurídicos, mas também algumas considerando motivos de ordem pessoal, com vistas a eleições futuras, patrimonial, com vistas à dominação de mercados farmacêuticos, ou ainda menos nobres, pela vaidade de figurar na mídia como reais promotores das políticas públicas de combate à pandemia. O abre e fecha de estabelecimentos e o combate a medicamentos que depois se mostraram eficazes na prevenção e cura da moléstia são capítulos que não enobrecem alguns dos personagens que os protagonizaram.
No Brasil, o esforço governamental de natureza econômico-jurídica, na esfera federal, para enfrentar a pandemia e seus efeitos danosos no mundo do trabalho, materializou-se na edição das Medidas Provisórias 927 e 936, alocando recursos financeiros e flexibilizando normas trabalhistas e tributárias, com o fim de salvar empregos e empresas durante o largo período de confinamento decretado pelas esferas estaduais e municipais.
Num primeiro esforço, a MP 927, de 22/03/20, tratou das “alternativas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19)”, elencando as que poderiam ser adotadas pelos empregadores: o teletrabalho, a antecipação de férias individuais, a concessão de férias coletivas, o aproveitamento e a antecipação de feriados, o banco de horas, o direcionamento do trabalhador para qualificação (artigo 3º).
Essa primeira norma legal de enfrentamento da pandemia tinha em conta a perspectiva de uma quarentena limitada, com medidas que teriam eficácia pelo período de no máximo quarenta dias de isolamento horizontal, uma vez que todas elas diziam respeito apenas ao gerenciamento dos períodos de trabalho e descanso pelo empregador (capítulos II a IX da MP), sem ajuda direta estatal para empresas e trabalhadores que teriam seus empreendimentos e empregos colocados em risco, juntamente com suas vidas.
O debate jurídico e político que se travou em torno da MP 927 dizia respeito especialmente às “outras disposições em matéria trabalhista” (capítulo X), voltadas à flexibilização das normas laborais nos serviços de saúde, de modo a que esses profissionais, heróis anônimos na guerra contra o inimigo invisível do coronavírus, pudessem ter suas jornadas prorrogadas, evitando que a população padecesse ainda mais por falta de médicos(as) e enfermeiros(as), já que, por outro lado, os esforços para aquisição de equipamentos e medicamentos estavam sendo envidados pelo governo federal e governos locais.
No entanto, em que pese nossa Suprema Corte ter referendado a maior parte dos dispositivos da MP, ao negar liminares na ADI 6342 (e nas conexas ADIs 6344, 6346, 6352 e 6354), que contestavam a constitucionalidade das medidas nela inseridas, acabou por determinar a suspensão do artigo 29 da MP 927 (Red. Min. Alexandre de Moraes, julgada em 29/04/20), que dispunha que “os casos de contaminação pelo coronavírus (Covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”.
Para que tal decisão do Pretório Excelso possa ter a virtude de salvaguardar trabalhadores e também empregadores diante do perigo da contaminação pela Covid-19, deve-se ter em conta que a suspensão do dispositivo não tornou a contração da Covid-19, por si só, doença ocupacional. O que se teve em conta, naturalmente, foi a parte final do dispositivo, que impunha ao empregado a prova do nexo causal da contaminação no ambiente de trabalho. Com efeito, difícil seria ao empregado fazer tal prova, pois o contato com pessoa infectada poderia advir de colega ou cliente, como também de familiar ou amigo, em outros âmbitos de convivência.
Ora, para que a decisão do Supremo Tribunal represente segurança jurídica para ambos os polos da relação trabalhista, sem que o temor de empregadores, de retomarem a atividade produtiva em regime presencial com o risco de serem futuramente responsabilizados pela doença ou até a morte de empregados que contraíram a moléstia, é admitir que, na ausência do artigo 29 da MP 927, deve prevalecer a teoria da responsabilidade subjetiva do empregador, em caso de contaminação do empregado, conforme estabelece nossa Carta Política (artigo 7º, XXVIII).
A questão reveste-se de especial relevância em face da jurisprudência do STF, em matéria de acidentes de trabalho, que reconheceu, para o tema 932 de repercussão geral, a tese de que “o artigo 927, parágrafo único, do Código Civil é compatível com o artigo 7º, XXVIII, da Constituição Federal, sendo constitucional a responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida, por sua natureza, apresentar exposição habitual a risco especial, com potencialidade lesiva e implicar ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade”.
É razoável imaginar que tal responsabilidade objetiva do empregador, em face do coronavírus e nos termos da tese erigida para o tema 932, aplique-se exclusivamente aos estabelecimentos de saúde, onde se tem contato direto com as pessoas infectadas pelo vírus, com vistas ao seu tratamento. No entanto, certa insegurança jurídica exsurge da experiência diuturna com decisões da Justiça do Trabalho estendendo a sem número de atividades, além daquelas expressamente elencadas como de risco pelo artigo 193 da CLT, a responsabilidade objetiva do empregador.
Nesse contexto de pandemia, em que, na retomada da atividade produtiva, o risco é generalizado, também a responsabilidade objetiva seria generalizada? Sabendo-se que o trabalhador, em contato com pessoas no trabalho, na família, na rua, em ambientes sociais, poderia ser contaminado em qualquer desses âmbitos, caberia apenas ao empregador arcar com as consequências econômicas da contração da doença?
Sabe-se que as indenizações por danos morais aplicadas pela Justiça do Trabalho têm sido elevadas, especialmente nos casos de acidente de trabalho, ao ponto de uma das maiores inovações da reforma trabalhista levada a cabo pela Lei 13.467/17 ter sido justamente a parametrização das indenizações por danos extrapatrimoniais, colocando limites aos valores impostos.
Tendo em vista que as ações de reparação por danos materiais e morais, em face de se ter padecido ou até morrido vítima de coronavírus, começarão a surgir por ocasião da retomada da atividade produtiva ainda quando não inteiramente debelada a pandemia, haveria de se ter em conta que, em sendo generalizado o risco de contágio, não há que se falar em atividade de risco especial, admitindo-se, no caso das demais atividades não ligadas diretamente aos serviços de saúde e tratamento da moléstia, a responsabilidade subjetiva do empregador, na modalidade de culpa presumida, passível de superação pela demonstração, por parte do empregador, de que cumpriu todos os protocolos de segurança exigidos pelas autoridades sanitárias, de modo a se poder concluir que a contaminação se deu em ambiente outro que não o laboral.
No fundo, talvez o artigo 29 da MP 927 poderia ter tido redação inversa (ou novo dispositivo que dirima as controvérsias em torno de tema tão delicado): “A contaminação por coronavírus (Covid-19) será considerada doença ocupacional no caso do não cumprimento, pelo empregador, das normas de segurança e medicina do trabalho emanadas das autoridades sanitárias referentes especificamente ao combate à pandemia, cabendo-lhe fazer prova do seu cumprimento para eximir-se da responsabilidade pela contração da doença”.
O que não pode ocorrer é a retomada da atividade produtiva com o empregador tendo sobre si a espada de Dâmocles da ameaça de uma responsabilidade objetiva por fato que constitui força maior, que atinge a todos indiscriminadamente, e que tem provocado, justamente pela paralisação da atividade produtiva, a falência de sem número de empresas, pequenas e grandes, que não suportam os custos do empreendimento, sem a obtenção de receitas que equilibrem o negócio.
Precisamente para preservar empregos e empresas, pois a pandemia fragilizou tanto trabalhadores quanto empresários igualmente, o governo federal editou, em 1º de abril de 2020, a MP 936, convertida na Lei 14.020/20 em 6 de julho, na qual partia para uma ajuda direta a todo o universo laboral, dando o seu aporte financeiro, juntamente com a relativização das normas inclusive constitucionais de flexibilização da legislação laboral, que contou com o aval de nossa Suprema Corte, sensível ao momento e às limitações impostas pela pandemia quanto aos mecanismos tradicionais da negociação coletiva.
A espinha dorsal da MP 936 (Lei 14.020/20) e do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda que veiculou foi a possibilidade de suspensão de contratos e redução de salários e jornada, com subsídio do governo, também garantido àqueles que se encontravam na economia informal. Mas, para isso, diante das dificuldades práticas da realização de assembleias gerais em tempos de vedação às aglomerações e isolamento horizontal, de modo a se obter autorização das categorias para que seus sindicatos promovessem a negociação coletiva, a lei autorizou a flexibilização de salários e jornadas por meio de acordos individuais, um pouco fora dos cânones dos artigos 7º, VI, XIII e XIV, da Constituição Federal.
A relutância do empresariado em aderir às fórmulas propostas na MP, pelo temor de futuros processos anulando acordos e determinando pagamento integral de salários por trabalho não realizado, talvez tenha contribuído na apreciação, pela nossa Suprema Corte, das liminares na ADI 6363, como também o exemplo do artigo 503 da CLT, que consta do diploma legal trabalhista desde a sua edição em 1943 e não fora tido por inconstitucional frente à Carta Política de 1988.
Tal dispositivo tem sua razão de ser para períodos como os que estamos passando, ao dispor que “é lícita, em caso de força maior ou prejuízos devidamente comprovados, a redução geral dos salários dos empregados da empresa, proporcionalmente aos salários de cada um, não podendo, entretanto, ser superior a 25% (vinte e cinco por cento), respeitado, em qualquer caso, o salário mínimo da região”. E seu parágrafo único, que recoloca as coisas no lugar, ao dispor que: “Cessados os efeitos decorrentes do motivo de força maior, é garantido o restabelecimento dos salários reduzidos”.
Assim, em 17 de abril o STF, diante do impacto profundo da pandemia nas relações de trabalho, trazendo efeitos trágicos se algo não fosse intentado pelo governo, rejeitava, por seu Plenário operando em regime de videoconferência, a liminar concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski, e reconhecia a constitucionalidade dos acordos individuais para suspensão de contratos ou redução proporcional de salários e jornada, durante o período mais crítico da pandemia, num máximo de quatro meses (Red. Des. Min. Alexandre de Moraes).
Desse modo, garantida a segurança jurídica para os acordos individuais, boa parte dos empregos foi preservada com o aporte governamental denominado de Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, pago inclusive para os que tivessem contrato de trabalho intermitente, no limite de R$ 600 mensais para estes (artigo 18).
Assim, passados quase quatro meses desde a decretação do isolamento social, e com as medidas adotadas pelo governo federal (ora acrescidas pelo Decreto 10.422, de 13 de julho de 2020, que amplia para um total de 120 dias a ajuda federal a trabalhadores e empresas), sancionadas quase integralmente pelo Supremo, temos o seguinte quadro socioeconômico no Brasil:
a) 1,8 milhão de pessoas foram contaminadas, sendo que 73 mil já morreram com a doença (2º país no mundo em número de mortos), numa população de 210 milhões de habitantes;
b) Para uma população economicamente ativa de 105 milhões de trabalhadores, que iniciou o ano com 11,9 milhões de desempregados e 38,3 milhões de trabalhadores na informalidade (segundo dados do IBGE), tivemos um aumento de 1,5 milhões de desempregados para os três primeiros meses de confinamento (março, abril e maio);
c) Sob o prisma empresarial, ao final de abril, havia um aumento de 46,3% no número de pedidos de recuperação judicial e aumento de 25% no número de pedidos de falência (segundo dados do Serasa);
d) Projeção de uma redução de 6,2% do PIB brasileiro para o ano de 2020, mostrando o tamanho colossal do encolhimento da economia em face da pandemia nesse período (segundo dados da Moody’s);
e) Com a MP 936, foram beneficiados até agora mais de 9 milhões de trabalhadores, que firmaram acordos com seus cerca de 1,3 milhões de empregadores, preservando-se empregos e empresas, pela suspensão contratual ou redução salarial e de jornada, passando a receber o benefício emergencial disponibilizado pelo governo (segundo dados da Secretaria de Trabalho do ME).
Em suma, nestes momentos delicados de pandemia, em que a saúde e a vida estão em jogo, mas também as fontes de sustento de trabalhadores e empresas, é preciso muita cautela e descortino na tomada de decisões, sejam elas políticas ou judiciais, na perspectiva da retomada paulatina da atividade produtiva presencial, dado seu notável impacto no mundo do trabalho, pois sem ele a vida passa a ficar comprometida a curto e médio prazos, a depender das condições financeiras de cada um ao se iniciar o isolamento social.
De qualquer forma, o que é certo é que o Brasil e o mundo sairão muito diferentes deste ano de 2020, marcado por tanto sofrimento e consciência da fragilidade humana em face da pandemia da Covid-19: mais solidário e mais espiritualizado, como vislumbra meu pai em seu recente livro “A Era dos Desafios” (Editora Quadrante), ele que foi acometido pela doença e a ela sobreviveu graças à solidariedade de tantos e à milagrosa graça de Deus.
*É ministro do Tribunal Superior do Trabalho, doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB).